Coitados dos terapeutas.
Antes as pessoas chegavam ao consultório com um único problema. Se a relação amorosa não estava bem, tinha o trabalho. Se o trabalho não ia de vento em popa, havia a segurança dos amigos. Se o lar da infância evidenciava traumas e recalques, um romance mantinha o equilíbrio.
Existia uma alternância saudável das crises. Não aconteciam ao mesmo tempo. Cada impasse esperava educadamente o outro acabar. Reinava a lógica, a capitulação da esperança, o desenvolvimento gradual das descobertas. O curativo apresentava um foco, um ponto de partida.
Hoje os pacientes aparecem com toda a personalidade fragmentada, abarcando a família desmoronada, a carreira desmoronada, os amores desmoronados. O desabafo foi substituído pelo desmoronamento. É um caos generalizado. Não encontram sequer um apoio positivo para sustentar o olhar.
Consultas são surtos. Predomina um medo da violência que não é somente física (assalto, morte), mas emocional (perder casa, família, profissão). O terapeuta enfrenta um redemoinho, um turbilhão, não mais um indivíduo. É um maremoto que transborda do divã.
Convertemo-nos em aparelhos, dependendo cada vez mais do backup e da reinicialização do sistema.
O desespero vem tomando conta das nossas fragilidades devido a uma mudança no código da vida. A estabilidade morreu. Nada é mais para sempre como antes. O emprego não é mais para sempre. O casamento não é mais para sempre. Nem os pais, os filhos e os amigos são para sempre. Desapareceu a sensação de infinito da condição humana, o poder da eridade e da continuidade. Acorda-se sem saber se estaremos naquele relacionamento ou naquela empresa.
Tudo parece um retrocesso, um eterno recomeçar. É um passo para frente, dois para trás. Aquela paixão que jurava que salvaria o seu destino só dura seis meses, o o de trabalho que traria poupança não dura um ano.
Experimenta-se uma insegurança de posição e uma permanente troca de cenários. A cigania tornou-se a nossa derradeira constância. Formar patrimônio e proteger laços, objetivos de nossos pais, são quase impraticáveis diante da efemeridade líquida. O planejamento de uma década acabou reduzido a 30 dias.
O desafio é ser feliz sendo transitório, é possuir uma resiliência criativa e um desapego a ponto de não levar qualquer fim para o lado pessoal, como se fosse incompetência ou derrota. As decepções estão interligadas na mesma incerteza: somos agora e nada mais.
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Fonte: Donna